Onde Moram as Vozes
Sempre
existiu uma casa esquecida no fim da Estrada do Cedro. Um casarão antigo, de
dois andares, com janelas altas, persianas partidas e uma pintura verde que o
tempo fez questão de apagar quase por completo. Muitos chamavam de “Casa
Verde”, mas ninguém falava sobre ela com frequência — como se o nome fosse o
suficiente, e tudo além disso fosse melhor deixar quieto. Estava ali antes de
qualquer um lembrar, e provavelmente ainda estará quando todos tiverem
esquecido.
Eu
sempre fui curioso. Inquieto. Um pouco teimoso, talvez. Ouvi histórias quando
era criança — histórias mal contadas, feitas de silêncios e olhares evasivos —
sobre gente que entrou ali e não saiu mais. Sobre luzes acesas em janelas
sujas. Sobre vozes que se ouvem quando o vento para.
Naquela
tarde nublada de outubro, com o céu cor de ferro e o ar parado, alguma coisa me
puxou até lá. Não por coragem, nem por desafio. Fui por um tipo de ausência...
uma vontade sem nome. Como se parte de mim já estivesse lá dentro, esperando.
![]() |
Imagem feita por Inteligência Artificial |
Lá
dentro, a luz era fraca, mas não completamente ausente. As janelas filtravam o
dia nublado num tom esverdeado, doentio. A sala principal era grande, com um
teto alto, paredes com papel rasgado, e um grande lustre de cristal pendurado
por fios gastos. Um piano encostado na parede parecia ter sido usado pela
última vez há décadas — mas algumas teclas ainda estavam abaixadas, como se
alguém tivesse acabado de tocar. Havia poltronas rasgadas, quadros tortos,
livros abertos no chão em páginas marcadas por manchas de umidade. E o
silêncio... não era completo.
Às
vezes, eu ouvia algo. Um som abafado, como uma respiração distante, ou
sussurros atrás das paredes. E toda vez que eu virava a cabeça, só o vazio. Mas
mesmo assim, os pelos da minha nuca se arrepiavam. Era como estar sendo
observado por algo sem olhos. Algo que não piscava.
Continuei
andando. Não por escolha. Por necessidade. Os cômodos se sucediam de forma
esquisita — às vezes, uma porta levava ao que parecia ser o mesmo quarto de
antes, só um pouco diferente. Outras vezes, uma escada aparecia onde antes
havia parede. Eu tentava memorizar os caminhos, mas a lógica da casa não seguia
a do mundo lá fora. A arquitetura parecia se mover levemente quando eu não
olhava. E eu comecei a esquecer quanto tempo havia passado desde que entrei.
As
vozes ficaram mais claras. No começo, eram murmúrios indistintos, como vento em
frestas. Depois, começaram a soar como palavras. Às vezes, diziam meu nome.
Outras, recitavam frases que eu jurava já ter pensado antes. Fragmentos de
conversas antigas, lembranças que não me pertenciam, mas que me pareciam
familiares.
Comecei
a me sentir... diluído.
Meus
reflexos nos espelhos estavam levemente fora de sincronia. Meu rosto parecia o
mesmo, mas com um quê de cansaço que eu não lembrava de ter. Quando tentei
sair, a porta da frente não estava mais lá. No lugar, havia uma estante repleta
de livros que eu tinha certeza que não existia antes. Voltar pelo mesmo caminho
também não funcionava — os corredores estavam diferentes. As janelas mostravam
paisagens que não pertenciam ao lado de fora.
A
casa não queria que eu fosse embora.
E,
com o tempo, percebi que ela não precisava me forçar a ficar. Ela apenas
esperava. Porque tudo ali é paciente. Os ruídos, as paredes, as sombras. Elas
observam. Elas se lembram. E eu comecei a esquecer. Primeiro os dias da semana.
Depois, minha última refeição. Depois, meu sobrenome.
Encontrei
outras pessoas. Ou pelo menos achei que encontrei. Figuras que surgiam em
corredores longos demais, que paravam e me olhavam como se me conhecessem. Uma
mulher de vestido cinza, sempre de costas. Um menino que desaparecia ao piscar.
Um homem parado diante de um espelho embaçado, repetindo a mesma frase em voz
baixa — uma frase que eu já não consigo lembrar.
Aos
poucos, fui me tornando parte dos cômodos. Um eco entre os ecos. Um pensamento
perdido em paredes vivas. Não sinto fome, nem sono. Apenas vago. E observo.
Talvez
você ouça minha voz, se passar perto da casa, em noites sem vento. Talvez sinta
que alguém te observa pela janela empoeirada. Talvez sonhe com corredores
escuros e relógios sem ponteiros.
Mas
se algum dia você ouvir seu próprio nome vindo lá de dentro... não responda.
Porque
é assim que começa.
E
ninguém sai de onde moram as vozes.
Comentários
Postar um comentário